sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

Meu primeiro tiro




Meu primeiro tiro Junho de 1997


É... o tempo lá fora não está nada bom. Estamos no outono, o mar está agitado, os pescadores não estão saindo por causa de muito vento e chuva pesada. O que fazer numa tarde de domingo como essa, um domingo friorento e chato? A televisão, como todos sabem, transformou os dias de domingos (sábados e feriados) num tremendo porre. Não pára de repetir programas que são apresentados há muitos anos, sem nenhuma variação importante. Bem, então vamos pensar e encontrar algo para fazer. Ah... sim. Já sei, vou escrever algo! Passo em revista o passado e escolho um fato que pode não parecer muito importante mas que foi marcante para mim. Foi uma grande emoção, me produziu muita adrenalina como diz a moçada hoje. Imaginem, o meu primeiro tiro com espingarda de verdade! Passando diretamente da espingardinha feita com cano de flande de lata e mola, com uma rolha na ponta amarrada de cordão para que pudesse ocorrer a sua recuperação. Foi coisa que nunca será esquecida, como não o foi e nunca será. Com a minha idade de 9 ou 10 anos, dar um tiro com espingarda de cartucho de verdade! Não, há coisas que a gente não esquece e essa foi uma delas. Tenho vivo na memória, como se tivesse acontecido ontem. Saímos cedo lá da casa do meu avô materno, na Av.Getúlio Vargas que hoje todo mundo conhece como Avenida Oceânica e caminhamos em direção ao ponto do bonde que ficava em frente ao armazém do Seu Apolinário, o galego. Naqueles tempos os espanhóis que existiam aqui eram galegos. Tratados como galegos, que passou a ser sinônimo de gringos. Bem, o ponto do bonde ficava bem no fim da avenida onde ela se junta com a rua da Paciência. No passeio do armazém que ficava numa esquina, que era de secos e molhados e onde hoje há uma vidraçaria com uma pintura chamativa porque muito sem gosto, na minha maneira de gostar. O bonde, amarelinho, cor oficial da Cia Linha Circular, tinha a bandeira nº 16, indicativo de AMARALINA . Você já imaginou, pelo menos nos dias de hoje, tomar um bonde ou outro transporte porque bonde não existe mais aqui em Salvador, com uma espingarda nas mãos? Pois foi o que o meu avô fez. A arma, dobrada, cartucheira na cintura. Era uma calibre 28 francesa, com a face externa sextavada, muito bonita, diria mesmo elegante. O bonde chegou, subimos e partimos para Amaralina. Passamos pelo Capim das Freiras, onde havia a Escola Don Bosco, ganhamos a Rua da Paciência, com casas dos dois lados, um deles dando fundos para a praia . No Capim das Freiras, havia uma coluna de granito com um medalhão em bronze, homenageando o jornalista Euricles de Matos, que tomou destino ignorado por ocasião do alargamento da rua da Paciência. As casas do lado da praia terminavam onde começa a praia de Santana. Ainda se pode constatar parte da fundação do palacete da família Rafael Menezes. Seguimos passando pela praia de Santana, pelo que sobrou do Forte do Rio Vermelho, onde hoje está a nova igreja de N.Sra. de Santana, que aproveitou parte das fundações do forte, pela Mariquita, logo adiante pelo Hospital Nita Costa, do qual só existem ruínas, pela velha fábrica de papel da qual resta a chaminé que dá nome a um posto de gasolina, pelo quartel do 4º GMAC, com os seus canhões apontados para o mar. À nossa esquerda, mato e à direita, o oceano Atlântico até o ponto final do bonde, onde existiam apenas um quiosque de baianas do acarajé e um bar que resiste ao tempo, mas que ficou como sempre foi, cada vez mais deteriorado. Terminou a viagem. Ali, viravam os bancos do bonde para a viagem de retorno pela mesma linha, pois só existia uma para os dois sentidos. O motorneiro mudava os comandos para o motor que tinha estado na trazeira, levava as suas manivelas e pronto. Recomeçava uma longa viagem até a praça da Sé. Dali do largo, tivemos que fazer um trajeto a pé que incluía atravessar um campo de futebol já sob um sol muito forte. Não havia nada no local, a não ser lá distante, um grupo de casas modestas. O solo era de areia, com vegetação rala e rasteira . O calor era forte. Vinha do sol e já emanava da areia quente. Calor, vegetação rasteira, areia e mar. Este era o ambiente e a paisagem. Lá longe, um pequeno conjunto de casas isoladas entre algumas árvores e no meio do nada. Numa delas, morava o companheiro do meu avô, se não me engano, um pintor, pintor de telas, um artista de nome Bellani, também italiano. Estava na hora! De espingardas em punho, duas, claro, os dois se embrenharam no que chamavam de mato e eu atrás. Sempre atrás, por recomendação do velho, à procura de passarinhos. Não foi mesmo uma caçada. Deveria ter sido uma passarinhada, de preferência de sabiás, que eram uma praga. Era o que se esperava encontrar, mas não tiveram sorte, para a felicidade dos passarinhos ou sabiás. Chegamos tarde! O sol, mais forte ainda, com a areia emanando muito calor os passarinhos não voavam! A movimentação da caça começa pela manhã bem cedinho e pela tarde quando ela vai começando a dar lugar à noite. Já estávamos voltando quando o "nonno" pegou uma folha seca, espetou-a em um espinho de mandacaru alto, me deu a espingarda carregada, sempre ao meu lado e muito cuidadoso, disse: tome, aponte para a folha e atire!... Puxa, as pernas ficaram moles e começaram a tremer! A tremer como varas verdes ao vento, mas eu estava possuído de um misto de medo e encantamento, porém determinado. Eufórico! Eu ia dar um tiro de verdade! E depois, contar para os meus amiguinhos! Nossa!...Tomei a arma com ele me ajudando e corrigindo a posição da coronha no ombro e apontei ainda incrédulo e trêmulo, para a folha espetada no espinho do mandacaru. Visava a folha, mas a bolinha na ponta do cano teimava em andar de um lado para o outro e a subir e a descer e eu não conseguia firmá-la... O "nonno" falou: aponte firme e aperte a coronha bem apertada no ombro. Fiz o que pude. Quando achei que estava com a mira certa, fechei os olhos e apertei o gatilho. Bum! Com o tiro, recebi um forte coice no ombro direito mas não caí, deu para segurar! Ainda pude ver o braço do mandacaru caindo com a folha espetada. Não acertei na folha, mas pelo menos atingi o mandacaru. Nada mal para um primeiro tiro, consideradas as circunstâncias, não acham ? Acertar no galho do mandacaru foi mesmo uma façanha! Não dá para esquecer. Nem do tiro, nem do velho...! Ainda vejo o mandacaru caindo quase que vagarosamente, para o seu lado esquerdo...

Esta pequena história aconteceu ali onde hoje está o bairro da Pituba . A casa do amigo Bellani, estava exatamente onde hoje é a rua Ubaranas. Quem diria, hein?... Na praia, havia uma construção de um médico famoso. Do Dr.Bureaux, uma casa em forma de navio com a proa apontada para o mar e Itapoã: era uma vila de pescadores da qual se ouvia falar, mas não havia estrada para chegar lá. Só indo a pé, e pela praia ! Tudo muda o tempo todo não é verdade? A cidade cresceu, e como!!!

Foto baixada da Internet

Sarnelli, 25.12 2008

Um comentário:

Anônimo disse...

Bartolo, posso imaginar tua emoção ao dar o primeiro tiro!
E isso não impediu de que te tornasses a pessoa doce que és!
Adorei a história!
Bjs
Bia