sábado, 20 de dezembro de 2008

Minhas recordações da Maria Fumaça - final


O p i r u l i t o

Eu sempre escolhia uma janela do lado do mar. Tinha uma desvantagem, porém , porque , volta e meia , era atingido por uma fagulha cuspida pela Maria Fumaça que sempre acertava em um dos meus olhos. Era sempre aquele drama até resolver a situação, mas, quem disse que eu desistia do meu lugar ? Estava sempre na janela e com a cabeça do lado de fora, sempre com o mesmo resultado. O problema das fagulhas , da fumaça e das cinzas eram tão sérios que, estou lembrando agora, muitos passageiros viajavam usando guarda-pós, comumente brancos. No trajeto havia diversos túneis. Se não me falha a memória , uns três . Pois bem, quando o trem entrava em um deles , era hora de respirar fundo ! Os vagões ficavam cheios de fumaça como se estivessem pegando fogo , acredite , por favor...Não é invenção minha não ! Mas quem disse que eu deixava a janela ? Era o de sempre. Acostumado com a história, meu avô tirava o lenço do bolso e limpava , delicadamente, os meus olhos lacrimejantes. À esta altura, já estávamos chegando à primeira parada. Outras aconteceriam durante a viagem . Em cada uma delas aparecia um formigueiro de vendedores. Taboleiros, bandeijas de amendoim, cocadas, mingaus, bolos , milho, pipoca e uma infinidade de outras coisas, todos apressados, pois tinham pouco tempo.. Muita gente descia do trem para tomar alguma coisa no bar da estação mas tudo tinha que ser feito às pressas pois as paradas eram curtas. Alguns minutos apenas. O apito do Chefe da estação, a Maria Fumaça começava a resfolegar e, lentamente arrastava atrás de si a composição aproximando-nos cada vez mais do nosso destino. As paisagens começavam a, novamente, a passar por nós cada vez mais velozes .À esta altura, o dia já ia se apagando e a escuridão tomando conta de tudo. Aos poucos, a paisagem desapareceu mas começavam a surgir as estrela . Não havia mais nada para ver lá fora, só o céu com as suas estrelas. E agora, o tédio de uma viagem monótona ! O que fazer ? dormir com o balanço do trem até ser acordado já em Mata ? Era o melhor, a viagem seria mais rápida. Vamos, acorda, chegamos ! Puxa, parecia que eu havia dormido uma eternidade. Quando somos crianças , o tempo não passa , tudo demora. A estação, iluminada e barulhenta. Um formigueiro de gente num corre corre maluco, alucinante, para tomar um café e comer um pedaço de bolo antes que o trem partisse. Tomar um mingau...Era um verdadeiro caos e, quase sempre , o dono do bar levava uns porretes de passageiros que largavam tudo sobre o balcão e saíam correndo atrás do trem... E, por falar no dono do bar, o cara era a cara do detetive chinês Chales Chan, sem tirar nem por . A estação, como todas as outras, era uma plataforma elevada e ficava entre as duas linhas. Podia acontecer, e era comum, de dois trens entrarem ao mesmo tempo, um subindo, o ouro descendo. Aí, então, a confusão era generalizada. Ninguém entendia ninguém . Aliás, nem era confusão. Era o caos mesmo. Mas era isto que interessava . A ida à estação para receber os trens, era o momento mais importante do dia.. Ir receber o “ Pirulito “ e ver os amigos e parentes chegados da “ Bahia “. Era o único acontecimento numa cidade monótona durante o dia. Afora isto, a exceção era o aparecimento ocasional de um circo com números que já conhecíamos de outras passagens...Os espetáculos e até mesmo as piadas eram sempre iguais , mas davam para o gasto. Melhor do que nada, não é ?Modificava um pouco a vida noturna da cidade que começava a adormecer quando o sol se escondia por trás das matas. Como não podia deixar de ser em cidade do interior, havia e ainda deve haver, a feira dos sábados no mercado Municipal. A chegada do “ Pirulito “ é que era o momento culminante do dia. Ver algumas pessoas chegando, outras voltando e, o que era melhor, saber as novidades mais novas da Capital. As novidades da Bahia ! Naqueles tempos, a Bahia era Salvador !... Como os meios de comunicação não eram os de hoje, os recém-chegados , com todas as novidades, eram motivo de atenções especiais e se aproveitavam para se darem ares de importantes, mesmo que passageira, afinal, acabavam de voltar de uma viagem, estavam voltando da Bahia, apesar de haverem rodado não mais que setenta quilômetros !
Mas o “ Pirulito “ já estava, novamente, de saída, Tinha que rolar por muito trilho até o final da viagem Piuiii...Piuiii...Piuiichan...chan...chan.. e lá se ia ele fungando e se embrenhando na escuridão da noite até que não se via nem se ouvia mais nada. Acabou. Já chegou, já foi, era hora de tomar o caminho de casa. A pouca ou quase nenhuma iluminação das ruas ia nos engolindo enquanto íamos deixando, ao longe, a estação ainda iluminada , mas que , aos poucos, escurecia também , até restarem apenas algumas poucas lâmpadas acesas gerando uma iluminação pálida que emprestaria ao resto da noite um aspecto lúgubre de velório. Nas ruas, alguns lampeões a carbureto com aquele seu mau cheiro característico ou a querosene quebravam a escuridão de vez em quando. Quando era noite de lua , tava tudo legal. Nem acendiam os lampeões . O céu era mais bonito e se viam mais estrelas ainda . Você já olhou para o céu, à noite, quando ele está estrelado e quando não tem à sua volta iluminação alguma ? Nossa, que coisa linda ! Indescritível . É, simplesmente, encantador !
Bem, a estada em Mata poderia durar alguns dias , não me lembro quantos. Sempre chegava o dia e a hora de voltar. E a volta começava ao ter que acordar cedo Para não perder o trem . Pelas ruas, neblina e um friozinho gostoso. Eu adorava e ver uma fumacinha sair da boca, era como se eu estivesse fumando. Me divertia. Não dava para entender mas eu gostava da brincadeira. Esta era a pior parte do passeio , sair da cama correndo. Engolir um café e sair com o pão nas mãos.... Mas, em compensação, na volta para casa , tinha a outra parte da viagem que eu mais gostava. O vovô, ou melhor, o nonno, já sabia... Estava careca de saber que tínhamos que descer em Plataforma, atravessar novamento o Porto dos Tainheiros de canoa para irmos tomar o bonde na Ribeira, que nos levaria até a Praça Cayru. A travessia era a melhor parte da viagem, a que mais me dava alegria. Enquanto a canoa vencia a distância eu brincava com a água do mar, naquela oportunidade limpa e transparente. Uma beleza. Dá para acreditar que o Porto dos Tainheiros já foi assim ? Pois é,..foi mesmo . Uma água fresca, gostosa . O Porto dos Tainheiros era um local limpo e saudável antes de começarem a aparecer as palafitas. Aliás, era nele que desciam os famosos Catalinas que cruzavam os céus do Brasil e desciam em Salvador. Ainda hoje existe a estação de passageiros, mal cuidada , é claro, mas está lá para contar a história . Os Catalinas eram feios, pesados, mas eram lindos vê-los amerizar. Desciam desajeitados, abrindo grande quantidade de água com espuma e, vagarosamente se aproximavam do seu local de atracação com direito a âncora também.. Para subirem, até pareciam que iriam precisar de todo o oceano , mas acabavam subindo e subindo e, aos poucos iam diminuindo até se tornarem um ponto no espaço que também desaparecia... Não me lembro exatamente os dias em que fazíamos as nossas viagens , mas eram constantes. Naqueles tempos, ninguém tinha compromisso com o tempo , muito menos o meu avô , que era escultor. Trabalhava quando queria e quando tinha inspiração. Aliás, eu acho mesmo que o tempo não dava bola pra ninguém porque tínhamos tempo para tudo e ainda sobrava e nem sabíamos o que fazer com ele... O tempo não passava e o ano nunca acabava. As férias demoravam para chegar, Hoje, o tempo avoa ! Olha , gente. Na história do “ Pirulito “ eu estava esquecendo de dizer que a Maria Fumaça não andava só. Tinha uma companheira, e barra pesada, Lindona ! Igualzinha a ela , porém , mais nova e cheia de cromados e dourados , tudo bem polido e lustroso . Uma maravilha ! Outra Maria Fumaça que não era apenas outra Maria Fumaça. Era coisa fina. Era a nossa Maria Fumaça , toda produzida e bem cuidada. Linda de morrer ! Quando apontava na curva chegava fazendo um bruta estardalhaço – Piuiii...piuiii...piuiii... e badalando o sino reluzente . Entrava imponente , resfolegante , na estação, lançando nuvens de vapor por todos os lados, dizendo: gente, cheguei ! OI eu ! E agora, depois de tantos anos, mais de meio século , onde andarão as nossas Marias Fumaça ?Dá dó só em pensar que possam estar em algum entroncamento ferroviário abandonadas e entregues à própria sorte para serem consumidas pelo tempo e devoradas pela ferrugem. Eram tão lindas !
Ah, sim, outra coisa que eu estava esquecendo. Durante as viagens para Mata tanto na ida como na volta, evidentemente, tínhamos o mesmo problema. Enfrentar os túneis da estrada. É que, ao transitar por eles, a fumaça das locomotivas, lançada neles invadia os vagões incomodando os passageiros. Era um incômodo que durava alguns minutos ainda depois que as locomotivas saíssem dos túneis para conseguirmos ar puro...Só vendo ! Era por isso que algumas pessoas viajavam de guarda-pós. Para preservar os seus ternos de linho branco irlandês, muito em voga na época. Coisas de antigamente. As coisas, de certa forma, melhoraram , mas sinto falta de como eram antigamente. Não dá para esquecer, não é mesmo ?
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Foto de Sarnelli

Sarnelli, 15.12.2008.




2 comentários:

Carmela disse...

Boas lembranças Sarnelli.Essa sua narrativa nos leva a pensar que estamos vivendo na cidade do ¨já teve¨.Mesmo com os novos tempos muita coisa poderia ser preservada.A minha preocupação é de passarmos do já teve, para o já foi e dai para o já era, é um passo.
Parabéns por presentear a todos nos com essas boas recordações.

Anônimo disse...

Meu amigo, que coisa boa rever teus escritos sobre o Pirolito!
Foi como ler pela primeira vez!
O que estás fazendo é lindo, preservando a memória de uma época passada - que determinou muita coisa do presente!
Um beijão!
Bia