sábado, 21 de fevereiro de 2009

Lembrança de um amigo de infância


O sonho do Agnaldo



Estou sempre falando de coisas do passado , não é mesmo ? , ... é isso mesmo que estou fazendo, é mania. Há coisa melhor do que falar das nossas próprias experiências , do que recuperar fatos da nossa memória, a partir da infância ? É que me lembrei do meu colega e amigo , o Agnaldo, cujo sobrenome não me recordo. Ele era ou é filho do telegrafista da estação de trem de Mata de São João,pelos idos da década de 1940 , uma cidadezinha do interior da Bahia , que parou no tempo e no espaço , a apenas cerca de 70 quilômetros de Salvador. Como todos sabem ,o telégrafo, era um equipamento indispensável numa estação de trem, para administrar os horários e acompanhar a evolução das viagens das composições puxadas pelas famosas Marias-fumaça. Na época, quando eu tinha os meus dez anos, era coisa moderna , e o mais eficiente meio de transmissão de notícias. Era muito importante. O rádio, caso se conseguisse energia para fazê-lo funcionar, captava muita interferências e era um custo entender as notícias. Era mais estática e descargas elétricas , do que outra coisa .Como não havia energia na cidade , ou era necessário um pequeno gerador ou algumas baterias de carro que precisavam estar sempre na recarga.
O telégrafo com aquela manipulação do código Morse ( toquinhos que transmitiam pontos, hífens , dois tracinhos ) fazia circular e chegar as notícias. Na época, era algo fantástico ! De olhos na fita que saía da máquina, cheia de traços e pontos, nós, a meninada , acompanhávamos a aproximação do trem, do “ Pirulito “ , que havia saído de Salvador em direção a Mata e outros destinos mais longe e sabíamos quando iria chegar. Era preciso algum conhecimento e experiência para saber o que aqueles pontos e traços na fita de papel informava. Interpretar de ouvido os toques, então, era a maior demonstração de habilidade possível , por que não ? Motivo de orgulho do operador da estação telegráfica ! Ficávamos encantados com aquela mágica que já conhecíamos de filmes de far-west , meninos desocupados e que só pensávamos em brincadeiras e em descobrir o mundo , não podíamos ficar alheios àquela invenção tão importante. Procurávamos aprender o código de traços e pontinhos, conseguir interpretá-lo na fita estreita que saía de uma grande bobina, ou melhor, de um carretel, indo cair diretamente no chão, raramente dentro de uma cesta , O telégrafo nos fascinava . Tentávamos interpretar, de ouvido, os toques da máquina, traduzir os pontinhos e traços e fazer os nossos próprios manipuladores. Aí, entrava a nossa criatividade ! Fiz diversos !Uma caixinha de charutos Suerdieck, um carretel de madeira vazio, cortado ao meio, algumas tachinhas , e uma tira de borracha , tirada de uma câmara de ar de bicicleta, e pronto, montava um manipulador . Nós treinávamos de brincadeira, lógico. Não se chegava a lugar algum . Não transmitíamos nada, mas tínhamos o nosso manipulador. Era apenas mais um brinquedo de madeira entre os tantos que costumávamos construir...Independentemente do telégrafo da estação, a cidade tinha uma agência dos Correios onde funcionava o equipamento oficial. O telegrafista era um senhor de uma certa idade e o seu diferencial era uma perna de pau, tal qual um pirata. Só lhe faltava mesmo o papagaio no ombro ! Nunca soube porque perdeu a perna, mas isso era algo que não interessava . O que interessava mesmo era ver a sua figura circulando com aquela perna de pau encaixada à altura do joelho...e de charuto na boca. Uma figura ímpar, porque transportava uma reluzente careca...
Bem, vamos voltar ao Agnaldo, porque a história está acabando. Sabem qual era o sonho do Agnaldo ? Já adivinharam ? Ser telegrafista, igual ao pai , vestir uma farda igual e se cobrir com um quepi daquele com a pala preta, me parece que de baquelite. Aliás , na época, era costume os filhos seguirem as profissões dos pais . Queria circular imponente, e importante pela estação dos trens. Pois é...tínhamos a mesma idade . Desde que saí de Mata para ir estudar no Vieira, nunca mais o vi. Se ele estiver vivo, estará aposentado como eu , olhando para trás, como todos nós fazemos, com saudades do manipulador no qual deve ter dado os primeiros toques , transmitindo em código Morse, as suas primeiras mensagens , quando deu início à sua carreira de profissional , numa hoje profissão totalmente superada. Espero que tenha conseguido. Não sei onde anda o Agnaldo nem se ele chegou a tocar em um micro. Certamente que ele pode ser considerado, como o pai, um pioneiro, dono de uma profissão que o progresso engoliu. Foi a evolução, o progresso , que acabou com uma infinidade de profissões dos tempos dos nossos avós , mas criou outras. Para nós , para os nossos filhos e complicou as vidas dos nossos netos e bisnetos...
A coisa não era tão fácil assim. Bastava um temporal, uma ventania , para quebrar os fios e interromper as comunicações . Isto sem contar com o furto de fios que já existia naquela época . Havia também atrasos por congestionamento de mensagens nas linhas. O telégrafo mais seguro foi, sem dúvida, o cabo submarino. Os cabos eram lançados no fundo dos mares em todas as direções, ligando países.Deve haver milhares de quilômetros deles repousando nos fundos dos mares abandonados que foram , por terem se tornado inúteis , com o progresso das comunicações. Aqui em Salvador, funcionava a The Western Company, companhia inglesa que teve a concessão por 100 anos. Hoje, como sabemos, tudo isto é coisa de museu. As comunicações transitam por satélites plantados no espaço e são imediatas. Um telegrama Western, que era o meio mais rápido de comunicação , podia ser entregue no espaço de duas ou três horas ou mesmo de uma apenas uma se o expedidor o taxasse e pagasse como “ urgente “.Claro que existiam outras empresas telegráficas como americanas ,italianas , inglesas, etc.
É.. Agnaldo, que saudades de antigamente, não é mesmo ? Esteja onde você estiver, deve estar vendo tudo o que aconteceu no nosso mundo, do de antigamente, para hoje , e dizendo: “ eu fiz parte desta história” . Que esteja vendo como as coisas eram mais simples e como hoje estão mais complicadas, mas, aqui para nós, que o mundo, sob certos aspectos, melhorou, melhorou e nem precisava tanto... Mas tem muita coisa para consertar até que os homens possam viver em paz consigo e com a natureza. No entanto, tudo o que surgiu de bom , nos custa um esforço muito maior com menos tranqüilidade...Vamos agradecer por termos nascido na hora certa e vivido o melhor período que o mundo poderia ter nos proporcionado . Um abraço, Agnaldo, esteja onde estiver.


Sarnelli
20.02.2009
Foto baixada da Internet

5 comentários:

Anônimo disse...

Bartolo, mais uma história que traz a poesia do que já passou! Muitas coisas mudaram, mas algumas coisas do passado carregam uma magia fascinante. E saber como as coisas funcionavam (há nem tanto tempo atrás) é encantador!
Obrigada por trazeres às pessoas este conhecimento!
Um fraterno abraço.

esperançoso disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Sarnelli disse...

Pois é, amigo ! Se lembra daqueles baús antigos de madeira, com a tampa abaulada ? Abri o meu e vou botar muita coisa para fora. Fiquei muito feliz em ter podido fazer com que trouxesse de volta boas recordações . Espero que muita gente leia o seu relato.É como eu digo. Não devemos lamentar que o tempo passou. Devemos festejar o fato de que pudemos tê-lo vivido e feito alguma coisa. Lá em Mata de São João, as coisas aconteciam exatamente como você relatou . Belos tempos, não ? - Abraços.

Cristiano Teixeira disse...

Eu nasci no início da decada de 60 e lembro dos telegramas da Western que meu pai recebia. Quando fui trabalhar no Rio no final da decada de 80, usavamos o telex no escritório e eu ficava maravilhado com aquilo. Logo depois apareceu o fax e aposentamos o telex. O resto todo mundo já sabe.

esperançoso disse...
Este comentário foi removido pelo autor.