terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

Dando uma de pioneiro


Não foram moles não Nem sei como é que fui parar lá. Não me lembro. Não consigo . Vou fazer um esforço para me lembrar das coisas da época porque a nossa vida foi muito difícil, minha e de Paola, a camisa 10, que segurava a barra da nova família que estava se constituindo. Antes de mais nada, vou dizendo que incluo esta parte da minha vida no meu “ antigamente era assim “ ou foi assim . Duro de roer. Foi em maio de 1959 , precisamente no dia 4, que acomodei o trazeiro naquela cadeira pela primeira vez, com o cargo de Chefe do Setor de Compras e Abastecimento, que não era aqui não. Era no fim do mundo. Fim do mundo que ficou perto para nós, hoje, mas onde, antigamente, só se chegava após uma viagem sacrificada . Fiquei por lá até outubro de 1960 . Estávamos nos instalando numa área que estava sendo desbravada e conhecida como Granjas Rurais Presidente Vargas , onde os terrenos eram vendidos a preços de banana . Se tivéssemos tido uma visão mais avançada, teríamos feito barba e cabelo . Naquela época, ninguém acreditava na Pituba e veja o que ela é hoje ! Bem, mas o assunto é o meu trabalho , a minha passagem pela empresa que instalamos naquele cafundó do Judas. Era tempo de pioneirismo. A empresa que estava chegando a Salvador tinha mesmo que se instalar no fim do mundo , principalmente depois do incêndio da Feira de Água de Meninos . Os tanques de combustíveis que estavam por lá, já estavam sendo transferidos para Mataripe. Depois da fogueira, e que fogueira, de Água de Meninos, nada mais de inflamáveis dentro da cidade. Certo. E, por causa disso, fomos instalar os nossos tanques em Campinas de Pirajá, que hoje é ali. Gente, para chegar lá, era um inferno ! Só havia uma opção , que era a estrada de rodagem – a saída de Salvador para o interior. Até o Largo do Tanque, tudo bem . Depois ? Zebra !... Do Rio Vermelho, da minha casa , para o terminal, era uma aventura e eu não podia , em hipótese alguma, correr o risco de perder o meu transporte, uma Opel , n. 181 da frota. A viagem era alegre e divertida por causa das brincadeiras e piadas com os companheiros mas, se perdesse a hora, era uma tragédia. Era melhor não ir, porque, ainda que tudo corresse bem, chegaria ao destino na hora de voltar. Imagine só : pegar um bonde no Rio Vermelho até a Praça Municipal, descer o Elevador Lacerda e pegar outro bonde até Calçada. Lá, esperar por dos dois ou três ônibus que faziam a linha Pau da Lima,via São Caetano , que só aparecia de hora em hora. Ainda assim, esperar o ônibus não era nada. Já cansado, tinha que enfrentar uma fila estranha e curiosa : gente de todo tipo, vestida, não vestida, de pés no chão, fumando charutos e cuspindo para todos os lados aquelas cusparadas pegajosas , nojentas e amarronzadas que revoltavam o estômago . A fila ficava em cima de uma ilha pavimentada com pedras portuguesas , mas era preciso entendê-la . Não era fila de pessoas não. Era fila de coisas , que marcavam os lugares das pessoas... podia ser um cacho de bananas, uma lata de azeite de dendê, sacos de farinha de mandioca, um peru com as pernas amarradas, um porquinho também com as quatro patas amarradas ou mesmo um cabrito ou uma gaiola com passarinhos. Gente, quando o ônibus pintava , era aquele corre-corre para apanhar as coisas . Aparecia gente de todos os lados e afunilavam na porta do ônibus. Valia a lei do mais forte ! Quase sempre eu viajava em pé . Não era mole não ! E a poluição ambiental ? Gente que suava a suor de uma semana sem tomar banho ! E mais a buraqueira da pista ? Toda aquelas tralhas e animais no piso do ônibus ? Era um sofrimento !

O trabalho em si, era aquele burocrático mas era volumoso demais , tanto que estávamos autorizados a fazer todos os extrardinarios que fossem necessários e que pudéssemos . Essa parte era boa porque necessitávamos e nós conseguíamos, a custa de muito esforço, é claro, simplesmente dobrar e às vezes até mesmo ultrapassar o salário. Para sair de casa, o meu horário era cinco da manhã e eu já saía com a marmita pronta pela Paola que acordava de madrugada para me dar comida fresca. Eu era o primeiro a ser apanhado , íamos em busca dos outros companheiros e era o último a ser largado à noite. Lá, nem geladeira tínhamos . Água para beber, se apanhava na cidade! Por isso, era controlada rigorosamente porque só se podia pegá-la uma vez por semana. Não se encontrava nada por lá, nada mesmo. Estávamos mesmo no mato em companhia de bichos e cobras e a água existente na redondeza era contaminada , imprópria para qualquer consumo e utilização. Para não dizer que não havia nada mesmo, porque estávamos a 400 metros de um Posto da Polícia Rodoviária, talvez 300 , onde também não havia nada, montaram um barraco, mas um barraco mesmo, com pedaços de coisas , para uma negra de nome Luzia, protegida do Correia, o cabra da peste pernanbucano que era o Chefe do Tráfego , que começou a fazer alguma coisa para nós. Vez por outra arriscávamos a saúde e íamos engolir uma gororoba que ela punha na mesa. Tinha ocasiões em que a Luzia fazia um figadozinho que era verdinho, verdinho que era uma beleza...Quando ela conseguia uma Coca-cola , era almoço de festa. Não era gelada não, mas assim mesmo soltávamos foguetes porque o refrigerante ajudava na digestão . Não é bom para desentupir pias ? Como disse, o trabalho era, normal, aquele de uma empresa que se implanta mas o transporte é que era o problema. Quem não pegasse o transporte para sair às 17 horas, estava frito e refém das oportunidades. Quase sempre eu e o Arinel nos arranjávamos com o Sr.Gianelli , Chefe Geral do Estabelecimento , como o italiano gostava de ser chamado. Gente boa o Gianelli , mas tinha a mania de só sair do terminal pelas 19 ou 20 horas. Ele tinha um jeep que chamava de “minha jipa “ . E ainda tinha mais : ele ia largando as pessoas pela cidade e elas tinham que se virar. O importante mesmo era conseguir sair de Campinas. Aos sábados, saíamos cedo. Às 17 horas e íamos tomar uma cerveja no bar do china , no Barbalho, do que resultava atrasar a chegada em casa . Por muito tempo só consegui ver o Cláudio dormindo, pois eu chegava tarde e saía , ainda de madrugada. Aos domingos, quando eu podia ter a sua companhia, estava exausto e quase não me agüentava em pé, acreditem.Vivia constantemente cansado , cansaço crônico. Mas não havia outro jeito, tinha que trabalhar . Teve um lance que não dá para esquecer. Uma tarde, o Superintendente Dr.Raffaele me chamou e disse que pretendia que eu fosse até Poções, que é ali...onde hoje se chega em cerca de umas três horas, para conseguir uma carga de retorno para a nossa carreta de fogões. Era a época em que a empresa estava chegando e introduzindo na praça o gás para fogão, ou seja, o gás engarrafado. As cozinhas aqui , na maioria das casas, eram à lenha. Ainda se usava o abano , o pegador de brasas e as casas tinham chaminés. Havia o limpador de chaminé profissional Quando uma chaminé entupia, era um desastre . A casa enchia de fumaça, todo mundo ficava com os olhos ardendo e, ainda por cima, o fogão não funcionava ! Uma droga ! Bem, os fogões chegavam do sul, em carretas , já montados, porém protegidos por grossas mantas para que o atrito entre eles não estragasse o esmalte.O problema era que a carreta deveria voltar vazia e se pretendia conseguir um frete de retorno para custear a descida. Pois bem. Eu era um soldado e o General estava me dando uma ordem . Me preparei e, no dia, Paola me fez um bolo, me arranjou mais alguma coisa e meu deu roupas limpas. Saímos de Campinas numa tarde qualquer de um dia de antigamente, Às duas da tarde , pegamos a estrada para vencer a primeira etapa, que veio a se constituir em um desastre. Não havia asfalto. Só poeira e buracos. Para se ter uma idéia, Feira , onde hoje se chega com 1,15 hora de carro estava distante de nós , mais que uma tarde inteira. À noite nos pegou na estrada e encostamos num barraco que apareceu, onde trituramos alguma coisa e devoramos o bolo. Pronto, já no primeiro dia , lá se foi o bolo. Passamos a noite na carreta e, no dia seguinte , prosseguimos por aquela estrada barrenta, poeirenta e cheia de buracos. Ainda nem bem tínhamos começado a viagem e a minha camisa branca mudou de cor para vermelho. Perdida, o primeiro prejuízo . Nós viajávamos, viajávamos, mato de todos os lados e Poções não chegava ! Não agüentava mais aquela aventura, aquela buraqueira, aqueles solavancos e o calor do próprio motor. Uma noite, dormi na carroceria, entre as mantas, porque estava frio demais, mas não tinha jeito, estávamos na estrada. A cabine, equivalia a uma geladeira. Na manhã seguinte, paramos em um posto. Tive que ir ao banheiro mas o intestino estava preso. Estava reclamando os maus tratos. Finalmente, sempre tem que haver um finalmente, chegamos a Poções. Fim de tarde , que alívio ! procuramos uma pensão na praça principal da cidade e encostamos a carreta. O motorista dizia conhecer e que era boazinha. Boazinha para ele. Seria para mim? A primeira coisa que procurei foi tomar um banho. Estava ressecado, me sentia um caco. Sonhava em tomar um banho, jantar e dormir. Nada mais. Me arranjaram uma toalha ( sem comentário ) e fui pró banheiro.Estava frio. De cara pisei em algo mole que não devia estar lá. Em todo caso, tomei o banho gelado, No jantar , houve uma briga entre eu e o frango que me colocaram no prato que me pareceu ter sido um ex lutador de Box falecido e aproveitado na panela. Na verdade pensei ter sido um galo de rinha ou mesmo um urubu. Quando vi o quarto, me apavorei ! Cheguei para o motorista e lhe disse: vamos trocar. Você dorme na pensão e eu na cabine. E assim foi. Apanhei umas mantas e me acomodei no beliche da cabine. Dormi uma noite razoavelmente bem. Acordei cedo, morrendo de frio e fome , com a cabine gelada.Até que foi bom. Depois de um café grosseiro, aluguei um carro e fui até a mina de amianto. O negócio não deu certo porque pagavam muito pouco. Se aproveitavam da situação porque havia motoristas que topavam qualquer frete, bastando que desse para custear a volta. Mas, não era o nosso caso. Ainda teríamos o ônus da entrega... Chegou a hora de tomar uma decisão. Liberar o motorista e voltar para casa de ônibus . Achei que seria burrice e que não agüentaria o mesmo tipo de viagem . Decidi seguir com a carreta para a cidade de Vitória da Conquista , Foi uma decisão acertada. Em Conquista , me despedi do motorista e do ajudante que até aqui ficou escondido nesta história , mas que estava lá e tomei um quarto no Hotel Albatroz , o melhor da cidade, com uma certa dificuldade devido ao meu aspecto. Tomei um belo banho jantei como um rei. Não me perguntem o que comi, mas estava legal. Dormi o sono dos justos, Anestesiado pelo exaurimento. No dia seguinte, após e café e já recuperado pelo menos em boa parte , procurei a Real companhia aérea que não existe mais e que tinha como símbolo um corcunda ,que o meu avô dizia dar sorte. Comprei a passagem, me mandei para o aeroporto, mais parecido com um campo de futebol e, às dez da manhã , o Douglas DC3 levantava vôo comigo no seu bojo. Antes do meio dia, estava em casa abraçando a minha Paola e o meu filho Cláudio. Era um sábado. Fiz um retorno em menos de duas horas, de uma viagem que durou três dias na estrada...É...mas antigamente era assim mesmo. Quando a Rio/Bahia estava ainda no papel, antes de ser completada e asfaltada, nós, aqui na Bahia, vivíamos, pode-se dizer, totalmente isolados do resto do mundo. Éramos uma aldeia . Pois é... andava muito cansado, precisando de férias mas o meu amigo Raffaele achou que eu não podia sair. Dei-lhe o trôco. Apresentei-lhe uma carta de demissão e respeitei o aviso-prévio que me cumpria dar à empresa. Antes de concluir esta passagem da minha vida, não posso deixar de colocar aqui a estória da lasanha do Arinel.

Ele era o Chefe da Contabilidade e, como nós trabalhávamos no mesmo salão, estávamos sempre juntos, Juntos para tudo , até na hora do almoço. E, então, um dia, ele me viu comendo uma lasanha verde . Não fez cerimônia. Foi logo dizendo. Sarnelli, me dá uma pedaço dessa lasanha ! Para ele, foi um sucesso , para mim, o meu almoço ficou menor. Depois desse episódio, eu tive que convidá-lo com a sua família para vir um domingo comer uma lasanha verde em casa. Avisei à Paola: se prepare porque a turma é da pesada . Mas eu não sabia ao certo, o peso do peso. Ele , andava pelos 120 quilos e o seu pessoal, mulher e dois filhos eram bem encorpadinhos. No domingo combinado, lá pelas dez da manhã, chegaram e nós ficamos conversando até a hora do almoço . Fizeram a festa ! Passamos a tarde também conversando e eu esperando que eles se fossem, mas nada. O tempo passou , escureceu e eles estavam em casa. Chegou a hora do jantar e o Arinel perguntou: Ainda tem lasanha ? Tem, sim. Então vamos jantar aqui. Pronto, lá se foi mais lasanha. Jantamos e ele foi de uma sem cerimônia espetacular . Perguntou novamente: ainda ficou lasanha ? É... ainda tem. – embrulha que eu levo, disse ele ! e foi , ainda, o que eu e ele almoçamos no dia seguinte em Campinas. Essa ficou na história. Boa, não ?



Um comentário:

Beatriz disse...

Bartolo, mais uma vez, trazes aos dias atuais a magia de tempos que já se foram! Consegues falar dos tempos antigos resgatando o que tiveram deespecial - sem ser saudosista! E consegues fazer um registro, para as gerações atuais, do que foram os tempos um pouquinho mais antigos - embora nem tanto!
Quantas coisas mudaram! Fiquei imaginando a cena - porquinhos, perus, sacolas: guardando lugar na fila! Fiquei imaginando a comida preparada pela Luzia (Deus me livre!). Mas acima de tudo, fiquei"vendo", com os olhos da imaginação e com tuas descrições minuciosas, o quanto tudo era mais difícil.O quanto a vida apresentava desafios que hoje praticamente inexistem. E muitos ainda se queixam !
Obrigada, meu grande amigo, por esta lição de história, por esta preciosidade que é este teu relato!
Meu abraço!