O trabalho em si, era aquele burocrático mas era volumoso demais , tanto que estávamos autorizados a fazer todos os extrardinarios que fossem necessários e que pudéssemos . Essa parte era boa porque necessitávamos e nós conseguíamos, a custa de muito esforço, é claro, simplesmente dobrar e às vezes até mesmo ultrapassar o salário. Para sair de casa, o meu horário era cinco da manhã e eu já saía com a marmita pronta pela Paola que acordava de madrugada para me dar comida fresca. Eu era o primeiro a ser apanhado , íamos em busca dos outros companheiros e era o último a ser largado à noite. Lá, nem geladeira tínhamos . Água para beber, se apanhava na cidade! Por isso, era controlada rigorosamente porque só se podia pegá-la uma vez por semana. Não se encontrava nada por lá, nada mesmo. Estávamos mesmo no mato em companhia de bichos e cobras e a água existente na redondeza era contaminada , imprópria para qualquer consumo e utilização. Para não dizer que não havia nada mesmo, porque estávamos a 400 metros de um Posto da Polícia Rodoviária, talvez 300 , onde também não havia nada, montaram um barraco, mas um barraco mesmo, com pedaços de coisas , para uma negra de nome Luzia, protegida do Correia, o cabra da peste pernanbucano que era o Chefe do Tráfego , que começou a fazer alguma coisa para nós. Vez por outra arriscávamos a saúde e íamos engolir uma gororoba que ela punha na mesa. Tinha ocasiões em que a Luzia fazia um figadozinho que era verdinho, verdinho que era uma beleza...Quando ela conseguia uma Coca-cola , era almoço de festa. Não era gelada não, mas assim mesmo soltávamos foguetes porque o refrigerante ajudava na digestão . Não é bom para desentupir pias ? Como disse, o trabalho era, normal, aquele de uma empresa que se implanta mas o transporte é que era o problema. Quem não pegasse o transporte para sair às 17 horas, estava frito e refém das oportunidades. Quase sempre eu e o Arinel nos arranjávamos com o Sr.Gianelli , Chefe Geral do Estabelecimento , como o italiano gostava de ser chamado. Gente boa o Gianelli , mas tinha a mania de só sair do terminal pelas 19 ou 20 horas. Ele tinha um jeep que chamava de “minha jipa “ . E ainda tinha mais : ele ia largando as pessoas pela cidade e elas tinham que se virar. O importante mesmo era conseguir sair de Campinas. Aos sábados, saíamos cedo. Às 17 horas e íamos tomar uma cerveja no bar do china , no Barbalho, do que resultava atrasar a chegada em casa . Por muito tempo só consegui ver o Cláudio dormindo, pois eu chegava tarde e saía , ainda de madrugada. Aos domingos, quando eu podia ter a sua companhia, estava exausto e quase não me agüentava em pé, acreditem.Vivia constantemente cansado , cansaço crônico. Mas não havia outro jeito, tinha que trabalhar . Teve um lance que não dá para esquecer. Uma tarde, o Superintendente Dr.Raffaele me chamou e disse que pretendia que eu fosse até Poções, que é ali...onde hoje se chega em cerca de umas três horas, para conseguir uma carga de retorno para a nossa carreta de fogões. Era a época em que a empresa estava chegando e introduzindo na praça o gás para fogão, ou seja, o gás engarrafado. As cozinhas aqui , na maioria das casas, eram à lenha. Ainda se usava o abano , o pegador de brasas e as casas tinham chaminés. Havia o limpador de chaminé profissional Quando uma chaminé entupia, era um desastre . A casa enchia de fumaça, todo mundo ficava com os olhos ardendo e, ainda por cima, o fogão não funcionava ! Uma droga ! Bem, os fogões chegavam do sul, em carretas , já montados, porém protegidos por grossas mantas para que o atrito entre eles não estragasse o esmalte.O problema era que a carreta deveria voltar vazia e se pretendia conseguir um frete de retorno para custear a descida. Pois bem. Eu era um soldado e o General estava me dando uma ordem . Me preparei e, no dia, Paola me fez um bolo, me arranjou mais alguma coisa e meu deu roupas limpas. Saímos de Campinas numa tarde qualquer de um dia de antigamente, Às duas da tarde , pegamos a estrada para vencer a primeira etapa, que veio a se constituir em um desastre. Não havia asfalto. Só poeira e buracos. Para se ter uma idéia, Feira , onde hoje se chega com 1,15 hora de carro estava distante de nós , mais que uma tarde inteira. À noite nos pegou na estrada e encostamos num barraco que apareceu, onde trituramos alguma coisa e devoramos o bolo. Pronto, já no primeiro dia , lá se foi o bolo. Passamos a noite na carreta e, no dia seguinte , prosseguimos por aquela estrada barrenta, poeirenta e cheia de buracos. Ainda nem bem tínhamos começado a viagem e a minha camisa branca mudou de cor para vermelho. Perdida, o primeiro prejuízo . Nós viajávamos, viajávamos, mato de todos os lados e Poções não chegava ! Não agüentava mais aquela aventura, aquela buraqueira, aqueles solavancos e o calor do próprio motor. Uma noite, dormi na carroceria, entre as mantas, porque estava frio demais, mas não tinha jeito, estávamos na estrada. A cabine, equivalia a uma geladeira. Na manhã seguinte, paramos em um posto. Tive que ir ao banheiro mas o intestino estava preso. Estava reclamando os maus tratos. Finalmente, sempre tem que haver um finalmente, chegamos a Poções. Fim de tarde , que alívio ! procuramos uma pensão na praça principal da cidade e encostamos a carreta. O motorista dizia conhecer e que era boazinha. Boazinha para ele. Seria para mim? A primeira coisa que procurei foi tomar um banho. Estava ressecado, me sentia um caco. Sonhava em tomar um banho, jantar e dormir. Nada mais. Me arranjaram uma toalha ( sem comentário ) e fui pró banheiro.Estava frio. De cara pisei em algo mole que não devia estar lá. Em todo caso, tomei o banho gelado, No jantar , houve uma briga entre eu e o frango que me colocaram no prato que me pareceu ter sido um ex lutador de Box falecido e aproveitado na panela. Na verdade pensei ter sido um galo de rinha ou mesmo um urubu. Quando vi o quarto, me apavorei ! Cheguei para o motorista e lhe disse: vamos trocar. Você dorme na pensão e eu na cabine. E assim foi. Apanhei umas mantas e me acomodei no beliche da cabine. Dormi uma noite razoavelmente bem. Acordei cedo, morrendo de frio e fome , com a cabine gelada.Até que foi bom. Depois de um café grosseiro, aluguei um carro e fui até a mina de amianto. O negócio não deu certo porque pagavam muito pouco. Se aproveitavam da situação porque havia motoristas que topavam qualquer frete, bastando que desse para custear a volta. Mas, não era o nosso caso. Ainda teríamos o ônus da entrega... Chegou a hora de tomar uma decisão. Liberar o motorista e voltar para casa de ônibus . Achei que seria burrice e que não agüentaria o mesmo tipo de viagem . Decidi seguir com a carreta para a cidade de Vitória da Conquista , Foi uma decisão acertada. Em Conquista , me despedi do motorista e do ajudante que até aqui ficou escondido nesta história , mas que estava lá e tomei um quarto no Hotel Albatroz , o melhor da cidade, com uma certa dificuldade devido ao meu aspecto. Tomei um belo banho jantei como um rei. Não me perguntem o que comi, mas estava legal. Dormi o sono dos justos, Anestesiado pelo exaurimento. No dia seguinte, após e café e já recuperado pelo menos em boa parte , procurei a Real companhia aérea que não existe mais e que tinha como símbolo um corcunda ,que o meu avô dizia dar sorte. Comprei a passagem, me mandei para o aeroporto, mais parecido com um campo de futebol e, às dez da manhã , o Douglas DC3 levantava vôo comigo no seu bojo. Antes do meio dia, estava em casa abraçando a minha Paola e o meu filho Cláudio. Era um sábado. Fiz um retorno em menos de duas horas, de uma viagem que durou três dias na estrada...É...mas antigamente era assim mesmo. Quando a Rio/Bahia estava ainda no papel, antes de ser completada e asfaltada, nós, aqui na Bahia, vivíamos, pode-se dizer, totalmente isolados do resto do mundo. Éramos uma aldeia . Pois é... andava muito cansado, precisando de férias mas o meu amigo Raffaele achou que eu não podia sair. Dei-lhe o trôco. Apresentei-lhe uma carta de demissão e respeitei o aviso-prévio que me cumpria dar à empresa. Antes de concluir esta passagem da minha vida, não posso deixar de colocar aqui a estória da lasanha do Arinel.
Ele era o Chefe da Contabilidade e, como nós trabalhávamos no mesmo salão, estávamos sempre juntos, Juntos para tudo , até na hora do almoço. E, então, um dia, ele me viu comendo uma lasanha verde . Não fez cerimônia. Foi logo dizendo. Sarnelli, me dá uma pedaço dessa lasanha ! Para ele, foi um sucesso , para mim, o meu almoço ficou menor. Depois desse episódio, eu tive que convidá-lo com a sua família para vir um domingo comer uma lasanha verde em casa. Avisei à Paola: se prepare porque a turma é da pesada . Mas eu não sabia ao certo, o peso do peso. Ele , andava pelos 120 quilos e o seu pessoal, mulher e dois filhos eram bem encorpadinhos. No domingo combinado, lá pelas dez da manhã, chegaram e nós ficamos conversando até a hora do almoço . Fizeram a festa ! Passamos a tarde também conversando e eu esperando que eles se fossem, mas nada. O tempo passou , escureceu e eles estavam em casa. Chegou a hora do jantar e o Arinel perguntou: Ainda tem lasanha ? Tem, sim. Então vamos jantar aqui. Pronto, lá se foi mais lasanha. Jantamos e ele foi de uma sem cerimônia espetacular . Perguntou novamente: ainda ficou lasanha ? É... ainda tem. – embrulha que eu levo, disse ele ! e foi , ainda, o que eu e ele almoçamos no dia seguinte em Campinas. Essa ficou na história. Boa, não ?
Um comentário:
Bartolo, mais uma vez, trazes aos dias atuais a magia de tempos que já se foram! Consegues falar dos tempos antigos resgatando o que tiveram deespecial - sem ser saudosista! E consegues fazer um registro, para as gerações atuais, do que foram os tempos um pouquinho mais antigos - embora nem tanto!
Quantas coisas mudaram! Fiquei imaginando a cena - porquinhos, perus, sacolas: guardando lugar na fila! Fiquei imaginando a comida preparada pela Luzia (Deus me livre!). Mas acima de tudo, fiquei"vendo", com os olhos da imaginação e com tuas descrições minuciosas, o quanto tudo era mais difícil.O quanto a vida apresentava desafios que hoje praticamente inexistem. E muitos ainda se queixam !
Obrigada, meu grande amigo, por esta lição de história, por esta preciosidade que é este teu relato!
Meu abraço!
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