terça-feira, 6 de janeiro de 2009

Ecos do passado







Ecos do passado


Em março de 1952 ( não está errado não. É 1952 mesmo ! )me muni de um passaporte italiano, Peguei um avião da Varig, um Convair, e me mandei de S.Paulo para Porto Alegre. Fiquei uma semana por lá , após a qual , procurei uma agência da Varig para fazer uma reserva num vôo para Montevideo. Foi aí que a coisa pegou !Naquela época, eu não havia completado ainda os 21 anos e o funcionário se recusou a fazer a reserva sob a alegação de que eu era menor. Concordei, tentando fazer-lhe ver que não era mais menor por força de uma emancipação legal , e comprovei com a escritura oficial, além de ter , na minha carteira de identidade Mod.19 , a anotação correspondente. Não adiantou coisa alguma . Acho que o cara nunca tinha visto um caso daquele...
De fato, ao completar os dezoito anos, me pai me emancipou e eu pude participar da empresa que tínhamos, com todos os direitos e obrigações dos maiores de 21 . Fazer o que ? Estava dado um nó no meu projeto de viagem. Só vi uma solução. Me mandei para o Juizado de Menores , onde passei o dia atrás de uma coisa e de outra, mas saí de lá com uma autorização para viajar livremente pelo país inteirinho e até ao exterior, se essa fosse a minha vontade...Documentos, não me faltavam ! Claro que viajei . Num fim de tarde, estava descendo no aeroporto internacional de Carrasco , em Montevideo!
Montevideo é uma cidade bonita e tem muito a ver com a minha Salvador , característica que lhe é dada pelas águas do Atlântico e pelas praias que são muito iguais. O porto fica dentro de uma enseada ou Baía , podendo servir com perfeição aos cenários de filmes de piratas e, aliás, esta foi a primeira idéia que me veio à cabeça.
Teve um dia que fui dar uma olhada no porto, como não poderia deixar de ser. Encostei num armazém onde um navio descarregava, sabem o que ? Latrinas !...Latrinas importadas da Inglaterra , da marca Hervy , com a indicação de Made in England ! As nossas latrinas também eram inglesas; Nós usávamos vasos importados, como outras coisa também. Telhas ? Eram francesas ! Até hoje temos casas cobertas em Salvador com telhas francesas... Aqui não se fabricava nada e tudo vinha de fora. Dependíamos do mundo inteiro ! O linho do terno branco que o baiano usava ? Era irlandês e, por aí afora...Com o tempo, é evidente que a coisa mudou, pois tudo muda o tempo todo...
Resolvi dar um passeio pela orla e peguei uma passagem num ônibus de turismo. Quer dizer, num cacareco com ampla visão , ideal para o passeio. Mas era um ônibus qualquer , um calhambeque mesmo, sem a cobertura, uma vez que fora, simplesmente, adaptado para aquele tipo de serviço . Ótimo para os dias de sol mas um pouco de chuva colocaria tudo a perder. O que não faltava era ventilação nem sol ... O passeio não me acrescentou nada de novo . Vi praias iguais às minhas mas, fosse como fosse, eu estava de férias e viajando . O passeio foi legal. Fazer nada e passear já é alguma coisa.
Bem, de Montevideo para Buenos Ayres, fui de avião. O avião de carreira era um hidro , do tipo Catalina . Para sair da água e subir não foi fácil não. A gente sentia que estava deslizando sobre a água, mas que não saía dela. Demorou um bocado para que ele, finalmente, saísse do oceano e começasse a ganhar altura. Quando o milagre aconteceu e senti que estava no ar , me perguntei como aquela zorra estava conseguindo voar . Fez tanta força para subir que pareceu que ia explodir. O interessante é que aquele monstrengo tinha dois andares e a comunicação se fazia por meio de uma escada caracol. A viagem foi boa e curta. O hidro desceu nas águas barrentas do Rio da Prata. Ainda era dia. Desembarcamos e fui para um hotel no centro de Buenos Ayres. Quando chegamos, o tempo estava bom e eu tratei de me acomodar no hotel e desfazer as minhas malas, pronto para as primeiras incursões. Eu estava em pleno centro de Buenos Ayres, do mesmo modo como tinha estado em Montevideo. Estava na caje Florida, uma das mais famosas de B.Ayres, pertinho da Esmeralda e outras importantes. Perto de tudo. Não precisava ir longe. Como não podia deixar de ser, já no hotel dei de cara com uma turma de brasileiros de S.Paulo e, assim, já fiquei enturmado . Tinha até a companhia do Inspetor da minha empresa.. Tinha a opção de sair sozinho e ou com a turma , enfim, tinha companhia. À noite íamos a restaurantes e boites para jantar, naturalmente , e assistir aos shows de dança. Algumas vezes até mesmo de tango , eu que adoro , mas o que mais escutava eram sambinhas...Tinha também a opção de sair com o inspetor da companhia para a qual eu trabalhava. Sr. Mancini, que me convidou para ( voltar ) ir com ele a Montevideo para buscar o “Andréa C” , navio da nossa companhia que estava chegando à Buenos Ayres procedente da Itália, com centenas de passageiros destinados à Argentina. Como se tratava do desembarque de muita gente, as autoridades argentinas se deslocaram para o Uruguay e, durante a viagem iriam conferindo os passaportes e dando os vistos de desembarque, para facilitar a chegada... Na ida, apanhamos o navio de carreira que saíu à noite e amanhecemos em Montevideo. Não deu para sentir a viagem, porque dormi logo que o bicho saiu. Tanto, não tinha nada mesmo para ver...Quando acordei, já estávamos atracados. Mancini, todo feliz da vida me disse que iria me levar para almoçar algo que chamou de “ Mickey Jones “ , pelo menos me pareceu isto. No restaurante, na hora em que o garçon trouxe o tal do Mickey Jones eu ri para mim mesmo , pois era, nada mais nada menos, que o nosso mexilhão , coisa que, na época, eu encontrava com facilidade nas pedras das praias de Santos e Guarujá... Não comentei nada e acompanhei a felicidade e a festa que ele estava fazendo ! Claro que também comi, pois era um dos frutos do mar da minha preferência mas, que foi engraçado, foi...Pegamos o “Andréa C”. Durante a viagem, umas doze horas, as autoridades argentinas atenderam os passageiros em fila com os documentos nas mãos. Chegamos a Buenos Ayres no fim da tarde com um drama para enfrentar. Eu dei azar ! O tempo havia mudado de uma hora para outra. A temperatura estava beirando o zero ! O pior de tudo: ventava um vento frio, gelado ! Para complicar ainda mais a situação , era um domingo e não havia táxis disponíveis. Como fazer ? A muito custo consegui uma charrete que estava chegando. Tomei-a e pedi que me levasse ao hotel Eu tremia, tremia de verdade. Estava com roupas inadequadas. Chuva e frio, demais para um baiano só. O vento era terrível ,e o que mais incomodava !No hotel mergulhei num banho quente, me enrolei todo, coloquei as roupas mais pesadas que tinha e fui para o bar. Tome-lhe chocolate quente com cognac ! Não sei quanto cognac tomei até me sentir razoavelmente bem,mas deve ter sido uma boa quantidade. Foi impressionante como o tempo mudou daquele jeito. No espaço de dois dias, a temperatura caiu de 25 para zero grau. Naquele tempo não havia satélite e a previsão do tempo era motivo de piadas. Do jeito que o vento e o frio chegaram, se foram . Passei mais alguns dias em Buenos Ayres e chegou o dia e a hora de voltar no mesmo “ Andrea C” – Voltaria por mar, curtindo uns dias de viagem. Não podia dar outra: dei de cara com mais brasileiros à bordo Quantas vezes, em Buenos Ayres, você se esforçava para se fazer entender e pedir uma informação e a pessoa ria na sua cara e lhe dizia: por que não fala em português mesmo ? A Viagem de volta começou normal. Primeiro, timidamente, a ambientação e, aos poucos, a aproximação com os outros passageiros até que o grupo se formava e começavam as brincadeiras. No meu grupo havia um alemão e um filho de italiano, o Dell’Aringa, com quem fiz uma amizade que continuou depois, pois ele era dono de uma padaria em Santos, onde eu morava, na época. A viagem foi distraída. Só foi ruim porque terminou. Brincávamos e pregávamos peças uns aos outros . As melhores gozações e brincadeiras ficaram por conta de uns brinquedinhos que comprei em Buenos Ayres, tudo falso. Bombinhas para colocar dentro de cigarros, almofadas que faziam barulhos estranhos, livros que explodiam, martelos de espuma , coisas assim. Todos andavam desconfiados de todos. Uma noite, à beira da piscina , um grupo conversava e explodiu em gargalhadas quando o cigarro do primeiro Oficial estourou no seu rosto !...No entanto,. O local preferido para as brincadeiras era o bar, principalmente com a almofada barulhenta. Quando alguém ia se sentar , um de nós enfiava a almofada redonda , cheia de ar e, quando a pessoa soltava o peso em cima, acontecia ! Pruum...! Igualzinho, só faltava mesmo o mau cheiro...As pessoas ficavam encabuladas enquanto os presente morriam de rir...Bem, a viagem foi uma delícia. Já disse que foi ruim porque acabou. Além das nossas próprias brincadeiras havia aquelas organizadas pelo Comissário. Fora das brincadeiras aconteceu um episódio que não deu mais para esquecer. Logo após a saída de Buenos Ayres, o Maitre chegou para mim e disse: Sr. Sarnelli, eu quero mandar fazer alguma coisa especial para o Senhor. É só dizer o que deseja que eu mandarei fazer. Agradeci a boa intenção e lhe disse que gostaria de comer um spaghetti alho e óleo . Ele se escandalizou ! Mas, Sr.Sarnelli, spaghetti alho e óleo não é coisa fina, é comida de pobre ! Não é elegante ! Bem, se não é elegante, paciência , mas eu gostaria de um belo prato de spaghetti. No almoço seguinte, trouxeram um belo prato de spaghetti com uma molheira discretamente coberta. Dentro, azeite quente com, sobre ele uma bela camada de alho triturado , no ponto , uma beleza , e doirado, exalando um cheiro que se espalhou por toda a sala de refeições. Bem, servi-me e comecei a comer mas a recomendação de discrição do Maitre foi para o beleleu . O alho se denunciou e os amigos queiram saber o que eu estava comendo. Não deu outra: no dia seguinte, spaghetti alho e óleo para todo mundo e algumas vezes mais durante os poucos dias do retorno.Foi a bordo do “ Andréa C” que aprendi a fazer o alho e óleo. Em casa se fazia com alguns dentes de alho e a bordo aprendi que é com a dentadura inteira .... Fica uma delícia ! O “Andréa C” era um navio pequeno e a primeira classe era reduzida, o que facilitou a união das pessoas. Era tudo elegante, porém simples, nada daquela sofisticação exibida a bordo dos grandes navios de luxo .. A viagem não podia ter sido melhor mas, como não há bem que sempre dure e mal que perdure, terminou ao atracamos no porto de Santos. Eu nem desci do navio, já havia começado a trabalhar. Ficou, para cada um, a lembrança e o relaxamento de uma viagem maravilhosa, embora de poucos dias. Fiz a parte que me competia e, quando o navio foi embora, eu disse a mesma frase de sempre : bem,.. mais um que se vai ! Era a minha maneira de “ contar” os navios que despachava...
De outra feita, embarquei em Santos no “ Giovanna C” , com destino a Salvador. O “ Giovanna C” era uma navio de carga mas tinha acomodações para 21 passageiros e eu era o único . Me sentia e era tratado com membro da tripulação, com direito a todas as mordomias, inclusive a fazer as refeições na mesa do comandante. Paramos três dias em Vitória do Espírito Santo. Viagem um pouco chata. Eu, muito jovem no meio daqueles oficiais e marujos calejados, verdadeiros lobos do mar habituados àquela vida tranqüila e rotineira de navegantes. De Vitória para Salvador, viagem monótona , apropriada mesmo para descanso. Durante o dia, a visão era do vasto oceano, do horizonte que nunca alcançávamos , do céu e, à nossa esquerda, a costa brasileira. À noite, escuridão total que favorecia olhar os milhões de estrelas que pontilhavam o céu. Se você chega, pelo mar, a Salvador, durante o dia, tem uma visão maravilhosa da cidade , que parece um presépio. À noite, também, porque totalmente iluminada. Desembarquei e fui para a casa de um amigo, na verdade, meu compadre duas vezes, até hoje. Não me lembro quanto tempo fiquei em Salvador, mas não foi pouco não. Deve ter sido um mês. Não dá para esquecer a viagem de volta para casa. Veja só que coisa: as coisas mudam o tempo todo, se mudam.. Voltem ao passado ! ....No dia do meu retorno, ainda de madrugada, às cinco della mattina, fui para o aeroporto. Tinha que pegar um avião para São Paulo. Era um DC-3 Douglas, o famoso Douglas, aquele com dois motores que ficou famoso pela segurança e que , quando pousava encostava a traseira com aquela rodinha na pista. Naquele tempo, tudo era diferente . Começava, que pesavam a bagagem e os passageiros , para calcularem a gasolina que iriam colocar nos tanques ! ... No embarque, você recebia ,ainda na escadinha , uma caixinha de papelão com o seu lanche. Era aquilo e estava acabado. A bordo, você encontrava os saquinhos para o caso de necessidade...
O avião levantou vôo logo cedo , o que me deixou alegre. Ia chegar cedo em casa ! Vã ilusão ! Tinha uma longa jornada pela frente . Eu cheguei a pensar que aquilo era um avião mas logo descobri que era um bonde aéreo. A primeira descida foi em Ilhéus. Um aeroporto no meio do nada. Comprei um coco com cachaça, lindamente decorado. Levantamos vôo outra vez. Um dos motores pegou fogo. Voltamos. Consertamos a joça , como tudo parecia bem, o piloto resolveu que podia ir. Eu, sempre desconfiado , de olho no motor do meu lado, justamente o que fora reparado. Sempre com uma ponta de desconfiança. Quem tem, tem medo, não é mesmo? Houve outra parada. Vocês sabem onde fica Pedra Azul ? Só sei que é em Minas, porém não é no meio do nada não, é mesmo no meio do mato! A pista , parecia um campo de futebol abandonado. Até hoje não sei porque descemos ali. Provavelmente para abastecer. Percebi que havia alguns tonéis e uma cabana . De fato, abasteceram o pássaro voador . Rolamos pela pista ou pelo campo, levantando muita poeira e subimos para mais uma descida em Belo Horizonte. Daí, ainda fizemos Rio de Janeiro e, finalmente, São Paulo , chegando no finzinho do dia, começo da noite.Antigamente era assim. Uma viagem cansativa quase uma aventura. O pior foi que eu estava com dor de barriga. Aquela dor de barriga ! Tentei diversas vezes ir no avião mas um ventinho não deixava. Só fui me livrar do meu problema na pensão do tio Armando, em Sampa, ainda assim com muito esforço e dificuldade. Não era mole não !

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Foto baixada da Internet
De um cartão postal da companhia proprietária do navio

Um comentário:

Anônimo disse...

Andréa C... Quem me dera ter estado ali! Posso imaginar a diversão de todos!
Sabe que o aroma do "alho e óleo" veio até aqui, em minha imaginação?
Mais uma aula especial de história - e de magia, que me transporta a um passado que quase me parece ter vivido!
Bjs
Bia