O alambique do rio Caboré
Hoje
me lembrei de algo que posso contar para vocês. Que ontem pela
manhã, embora rapidamente vi uma parte
de um programa de TV destinado e entreter as donas de casas , ensinando uma
série de coisinhas , principalmente receitas, mas, na qual são encaixadas algumas
reportagens interessantes. Tais
programas sempre ensinam alguma coisa , embora ninguém vá fazer tudo o que
mostram na televisão.
A
reportagem sobre a qual me interessei falava da nossa cachaça, da nossa pinguinha , da danadinha, a partir
do momento em que se realiza o plantio da muda da cana até o ponto em que
aquele líquido branco e morninho sai lá da torneirinha , já em condições de ser
provado e, naturalmente, esquentar e
fazer virar a cabeça de qualquer um – água de fogo , água ardente ... Água que passarinho não bebe ! Na
reportagem, o dono do alambique o
descreveu e acompanhou todo o processo, tirou um copo de pinga da torneirinha
do qual o repórter , o cinegrafista e ele próprio ,o proprietário , provaram só um gole para não exagerar e apenas para fazer pose para a câmara..... Não dava para engolir todo o líquido
contido naquele copo , afinal eles estavam trabalhando.!
Bem,
a reportagem me remeteu aos tempos de Mata de São João , onde passei uma
pequena parte da minha infância por motivos políticos , que diziam respeito ao
meu pai, ao meu tio Domingos e ao meu avô Pasquale, por serem italianos. Claro que isso foi no tempo da última grande guerra. Lá, meu
pai comprava, consertava e alugava casas . Casinhas de sopapo cobertas de
folhas de coqueiro e depois inventou de instalar um aviário e fazia disso o seu
trabalho e o nosso sustento. Meu tio Domingos , já foi mais longe . Se meteu
com cachaça. Pera aí! Vamos nos entender direito ! Começou a fabricar cachaça
para vender...
Instalou
um alambique que não era tão bonitinho e lustroso como o da reportagem mas era um alambiquinho
... Fazia cachaça e pinga da boa.
Bem
, não tinha um só pé de cana na redondeza , mas o Tio Domingos instalou o seu alambiquinho
quase em cima da estrada de rodagem, ao lado de um pequeno rio que não teria
mais que cinco metros de largura. Uma água cristalina corria solta , tão boa que a
gente podia até beber . Fresquinha e gostosa vinha de dentro dos matos ninguém
chegou a saber de onde . Bem o alambiquinho produzia pinga de melaço. Ele tinha
que ser buscado longe ,apanhado num engenho , em uma fazenda a quilômetros de
distância e era um trabalho penoso, pois o melaço era transportado nos lombos
dos burros ou mulas , uma tropa, e contido em grandes bolsas de couro que à
chegada ao destino eram vertidas em grandes tinas de madeira e depois do tempo
necessário à fermentação , seguia para o alambique sobre a fornalha onde seria
transformado em vapor . Passando por serpentinas , jorraria um líquido pela
torneirinha, conhecido pelo nome de cachaça ou aguardente ou mesmo pinga, que é
o mais popular. A bebida brasileira , descoberta acidentalmente pelos escravos
...
Até
aí tudo bem, não é mesmo ? Um pequeno alambique que fazia vir o seu melaço de
longe, instalado numa curva da estrada de rodagem , no trecho Mata/ Bonfim ,
onde ficava o cemitério da cidade , bem ao lado de um riozinho de águas
cristalinas. Este riacho, como todos os que se respeitam no interior, tem ou tinham
lugares separados para homens e mulheres tomarem banho. Ou seja: banheiro para
os homens e para as mulheres, onde se podia tomar banho pelados sem que ninguém
incomodasse nem ficasse olhando às escondidas . Quem quisesse tomar um banho, era
só chegar ao seu banheiro, largar as roupas em alguns galhos e pelado ou pelada,
entrar no banheiro , onde dava para ficar até o pé do umbigo , que era mais fundinho
que o resto do leito do rio.
Era
nele que se lavavam as garrafas que iriam conter o produto do alambique que até
uma certa altura nem nome tinha . Nem sei mesmo se o tio tinha licença para
funcionar aquele alambique nem se pagava impostos... Lá estava ele na beira da
estrada, para quem quisesse vê-lo...No rio, o tio havia feito uma cerca baixinha,
quase do seu nível , fincada de um
lado a outro com espaços onde as garrafas não passavam e era aí que nós,
inclusive eu, é claro, as lavávamos as ditas cujas ...
As
garrafas para a reutilização eram recolhidas nos bares e armazéns de Mata e nós
só fazíamos lavá-las, tirar-lhes os rótulos, lavá-las bem lavadinhas e
colocá-las para secar num espaço apropriado . Mas o mais importante era a farra
que se fazia no rio, mesmo “ trabalhando “ .Claro que depois de tanto trabalho
e após ficar tanto tempo dentro d’água tínhamos( eu e os meus amiguinhos ), direito a um gole da pinga quentinha, quentinha,
servida num copo de bambu , não sei por qual motivo apelidado de “ o corno “
pelo meu tio Domingos. Ele gostava de esculhambar com tudo e essa deve ter sido
uma das suas esculhambações.
Claro
que em dia de chuva quando a água do rio turvava e ou não tínhamos garrafas
para lavar, tínhamos um outro motivo para ganhar uma gota de pinga no “ corno”
– Lavarmos o carro , às vezes dois , e
nos molhávamos e nos enlameávamos à vontade ! Mas só isso não bastava ! A pinga
precisava ser engarrafada, rotulada e tampada . Tudo era feito manualmente e
esse trabalho também nos era recompensado, por exigência nossa, diga-se a
verdade . Sim, com a célebre gotinha .
Não, não confunda com a vacina do Zé Gotinha !
Era
comum parar gente para bater um papo com o “Tio Domingo” e papo vai papo vem,
uma pinguinha, para rebater a chuva, uma pinguinha para rebater o calor, enfim
todas as pessoas tinham algo a rebater para ganhar um gole de pinga.
Mas
a danada da pinga, que chegou a ficar famosa na cidade, não tinha nome. Levou
um tempão até que não sei de onde surgiu o nome “MOCOTÓ’ ,muito bem aceito e devidamente apreciado pelos pinguços que
mantinham a atividade do Tio Domingos
Eu
não me lembro quem era mais conhecido na cidade. Se o tio , um tipo
brincalhão e meio cigano , ou a MOCOTÓ
....
Ainda
tem quem se lembre dessa fase ! Um amigo, cujo nome é David , que todas as vezes que nos encontramos
lembra os tempos da Mocotó...e é claro, das nossas brincadeiras de então.
Mas o alambique com a sua MOCOTÓ , embora tivessem tido vida curta , permaneceram para sempre nas nossas agradáveis memórias de então.
Bartolo Sarnelli
Rio Vermelho, Salvador/Ba -
20 de novembro de 2013