sexta-feira, 22 de novembro de 2013

O alambique do rio CABORÉ



O alambique do rio Caboré

Hoje me lembrei de algo que posso contar para vocês. Que ontem pela manhã, embora rapidamente  vi uma parte de um programa de TV destinado e entreter as donas de casas , ensinando uma série de coisinhas  , principalmente receitas,  mas, na qual são encaixadas algumas reportagens  interessantes. Tais programas sempre ensinam alguma coisa , embora ninguém vá fazer tudo o que mostram na televisão.
A reportagem sobre a qual me interessei falava da nossa cachaça,  da nossa pinguinha , da danadinha, a partir do momento em que se realiza o plantio da muda da cana até o ponto em que aquele líquido branco e morninho sai lá da torneirinha , já em condições de ser provado e, naturalmente,  esquentar e fazer virar a cabeça de qualquer um – água de fogo , água ardente ... Água que passarinho não bebe ! Na reportagem,  o dono do alambique o descreveu e acompanhou todo o processo, tirou um copo de pinga da torneirinha do qual o repórter , o cinegrafista e ele próprio ,o proprietário , provaram só um gole para não exagerar e apenas para fazer pose para a câmara.....   Não dava para engolir todo o líquido contido naquele copo , afinal eles estavam trabalhando.!

Bem, a reportagem me remeteu aos tempos de Mata de São João , onde passei uma pequena parte da minha infância por motivos políticos , que diziam respeito ao meu pai, ao meu tio Domingos e ao meu avô Pasquale, por serem italianos. Claro que isso foi no tempo da última grande guerra. Lá, meu pai comprava, consertava e alugava casas . Casinhas de sopapo cobertas de folhas de coqueiro e depois inventou de instalar um aviário e fazia disso o seu trabalho e o nosso sustento. Meu tio Domingos , já foi mais longe . Se meteu com cachaça. Pera aí! Vamos nos entender direito ! Começou a fabricar cachaça para vender...
Instalou um alambique que não era tão bonitinho e lustroso  como o da reportagem mas era um alambiquinho ...    Fazia cachaça e pinga da boa.
Bem , não tinha um só pé de cana na redondeza ,  mas o Tio Domingos instalou o seu alambiquinho quase em cima da estrada de rodagem, ao lado de um pequeno rio que não teria mais que cinco metros de largura. Uma água cristalina corria solta , tão boa que a gente podia até beber . Fresquinha e gostosa vinha de dentro dos matos ninguém chegou a saber de onde . Bem o alambiquinho produzia pinga de melaço. Ele tinha que ser buscado longe ,apanhado num engenho , em uma fazenda a quilômetros de distância e era um trabalho penoso, pois o melaço era transportado nos lombos dos burros ou mulas , uma tropa, e contido em grandes bolsas de couro que à chegada ao destino eram vertidas em grandes tinas de madeira e depois do tempo necessário à fermentação , seguia para o alambique sobre a fornalha onde seria transformado em vapor . Passando por serpentinas , jorraria um líquido pela torneirinha, conhecido pelo nome de cachaça ou aguardente ou mesmo pinga, que é o mais popular. A bebida brasileira , descoberta acidentalmente pelos escravos ...

Até aí tudo bem, não é mesmo ? Um pequeno alambique que fazia vir o seu melaço de longe, instalado numa curva da estrada de rodagem , no trecho Mata/ Bonfim , onde ficava o cemitério da cidade , bem ao lado de um riozinho de águas cristalinas. Este riacho, como todos os que se respeitam no interior, tem ou tinham lugares separados para homens e mulheres tomarem banho. Ou seja: banheiro para os homens e para as mulheres, onde se podia tomar banho pelados sem que ninguém incomodasse nem ficasse olhando às escondidas . Quem quisesse tomar um banho, era só chegar ao seu banheiro, largar as roupas em alguns galhos e pelado ou pelada, entrar no banheiro , onde dava para ficar até o pé do umbigo , que era mais fundinho que o resto do leito do rio.
Era nele que se lavavam as garrafas que iriam conter o produto do alambique que até uma certa altura nem nome tinha . Nem sei mesmo se o tio tinha licença para funcionar aquele alambique nem se pagava impostos... Lá estava ele na beira da estrada, para quem quisesse vê-lo...No rio, o tio havia feito uma cerca baixinha, quase do seu nível  , fincada de um lado a outro com espaços onde as garrafas não passavam e era aí que nós, inclusive eu, é claro, as lavávamos as ditas cujas ...

As garrafas para a reutilização eram recolhidas nos bares e armazéns de Mata e nós só fazíamos lavá-las, tirar-lhes os rótulos, lavá-las bem lavadinhas e colocá-las para secar num espaço apropriado . Mas o mais importante era a farra que se fazia no rio, mesmo “ trabalhando “ .Claro que depois de tanto trabalho e após ficar tanto tempo dentro d’água tínhamos( eu e os meus amiguinhos ),  direito a um gole da pinga quentinha, quentinha, servida num copo de bambu , não sei por qual motivo apelidado de “ o corno “ pelo meu tio Domingos. Ele gostava de esculhambar com tudo e essa deve ter sido uma das suas esculhambações.
Claro que em dia de chuva quando a água do rio turvava e ou não tínhamos garrafas para lavar, tínhamos um outro motivo para ganhar uma gota de pinga no “ corno” – Lavarmos o carro , às vezes dois ,  e nos molhávamos e nos enlameávamos à vontade ! Mas só isso não bastava ! A pinga precisava ser engarrafada, rotulada e tampada . Tudo era feito manualmente e esse trabalho também nos era recompensado, por exigência nossa, diga-se a verdade . Sim,  com a célebre gotinha . Não, não confunda com a vacina do Zé Gotinha !

Era comum parar gente para bater um papo com o “Tio Domingo” e papo vai papo vem, uma pinguinha, para rebater a chuva, uma pinguinha para rebater o calor, enfim todas as pessoas tinham algo a rebater para ganhar um gole de pinga.

Mas a danada da pinga, que chegou a ficar famosa na cidade, não tinha nome. Levou um tempão até que não sei de onde surgiu o nome “MOCOTÓ’ ,muito bem aceito e devidamente apreciado pelos pinguços que mantinham a atividade do Tio Domingos

Eu não me lembro quem era mais conhecido na cidade. Se o tio , um tipo brincalhão e meio cigano ,  ou a MOCOTÓ ....


Ainda tem quem se lembre dessa fase !  Um amigo, cujo nome é David ,  que todas as vezes que nos encontramos  lembra os tempos da Mocotó...e é claro, das nossas brincadeiras de então. 

Mas o alambique com a sua MOCOTÓ , embora tivessem tido vida curta , permaneceram para sempre nas nossas agradáveis memórias de então.

Bartolo Sarnelli


Rio Vermelho, Salvador/Ba -
20 de novembro de 2013

Um comentário:

Anônimo disse...

Muito interessante esta volta ao passado e esta história da pinguinha Mocotó. Viveste a infância numa época em que as crianças ainda podiam ter muita liberdade!
Gostei demais deste relato histórico!
Grande abraço,
Bia