sábado, 19 de novembro de 2011

Arraias no ar - Por do sol do dia 18.11.2011 visto das praias do Rio Vermelho





Os empinadores de arraias do Rio Vermelho
Foi na manhã de hoje , dia da Proclamação da República e também um dia da já tradicional reunião dos sábados, domingos e feriados , que eu e mais três velhos amigos estávamos conversando abobrinhas, eles degustando uma cervejinha gelada e eu o meu uisque , e algum tira-gosto , quando entrou na conversa o tema arraias...
Foi aí que retrocedemos no tempo e voltamos aos anos de 1940 para relembrar as nossas peripécias de empinadores de arraias.Quando não tínhamos que ir ao colégio, gastávamos a manhã pescando , tomando banhos de mar, jogando bolinhas de gude , peão e outras atividades próprias da idade.
Às tardes , Capim das Freiras , para empinar arraias. Para quem não sabe onde era ou é o capim das freiras, é aquele espaço da Paciência que fica bem em frente à Pedra dos Pássaros , até onde íamos, quando o mar permitia e a coragem deixava...Algumas vezes arrisquei ir até ela com o mar muito calmo, mas era algo fatigante , mesmo para quem tinha a energia daquela idade... Nós gastamos num só dia, toda energia acumulada durante uma noite de bom sono e para isso íamos dormir cedo...
Bem, mas vamos voltar às nossas arraias. Aqui na Bahia as arraias têm um formato retangular e apenas raras vezes, mas raríssimas mesmo, se via ou se vê uma pipa como usam em S.Paulo e outros estados , que chamamos de bacalháu .
As Arraias eram feitas de papel de seda , cruzadas por taliscas de uma vara que nós chamávamos de flexa , usadas também para pescar , muito comum no estado, época mas transformou-se em raridade. As taliscas eram coladas no papel formando um “X” , sendo que uma de cada lado, o que lhe dava solidez. Então era preciso fazer a chave, algo que chamarei de cabresto , para amarrar a linha, algo determinante para ter o seu controle total no ar , normalmente de um carretel ou mesmo dois para que pudesse para ir mais longe, das marcas Coração n. 30 ou mesmo Corrente 20 , um pouco mais grossa ou, ainda, um simples novelo 20, porém com pouca linha... Para manter o equilíbrio no ar, era preciso preparar uma rabada, que alguns meninos faziam com estreitas tiras de tecido leve , no comprimento de cerca de 3 à 3,5 metros. No entanto, quem se esmerava , os campeões, preparavam rabadas de algodão, pequenos flocos ou bolinhas amarrados , um por um , num pedaço de linha com uns 4 ou cinco metros partindo do maior para o menor até terminar apena num simples pedaço de linha. Aí estava o segredo dos empinadores. Fazer a chave e uma bela rabada . Era fácil identificar uma arraia. Claro que todos nós preparávamos as nossas arraias em modelos diversos e misturando cores que combinassem . Claro também que havia os iniciantes e os empinadores de “ periquitos” , meninos pobres que recolhiam pedaços de linha aqui e ali...Os periquitos eram, simplesmente , feitos de papel de jornal ou folhas de caderno , convenientemente dobradas para acolher o vento e tinham uma rabada de cordão de padaria.... Só serviam mesmo para atrapalhar os maiores, mas eles também tinham direito a se divertir e não poucas vezes, um simples periquito cortava uma arraia no ar ! Havia a arraia “ Pão de açúcar” , podia der um “X” que se destacava no ar, um xadrez . Podia ser mesmo apenas vermelha, azul ou verde mas, e até mesmo com papel de jornal montadas com taliscas de palmas de coqueiro...
Quem gostava do esporte , que era emocionantes , se dedicava a fazer coisas mais sofisticadas que eram a sua marca. Um outro local em que empinávamos arraias, era no Farol de Barra, outro pedaço apropriado, com ventos fortes.
Eu e minha turma sempre estivemos nessa . O céu azul de Salvador estava sempre enfeitado de arraias multicoloridas, que se movimentavam graciosamente de um lado para o ouro, algumas mais altas, outras mais baixas. Algumas iam longe, outras nem tanto e algumas quase não saíam do chão por falta de fio... Divertido , emocionante e, por isso mesmo , “ viciante “ ! E, claro, havia também a ansiedade , a bagunça, a torcida e a algazarra ...no momento de uma pegada ;Quem foi empinador de arraia sabe o que estou dizendo “ . Tinha gente que só tinha cabeça para pensar em arraias . E a regra era muito simples , que prevalece até hoje : “ arraia no ar, não tem dono “...
Bem , voltando ao nosso capim das freiras , e se não me falha a Memória , bem ali, existia , de frente para a rua da Paciência, um bloco de granito trabalhado com , encrustado , um medalhão de autoria do escultor italiano , Pasquale De Chirico, morador pioneiro no Rio Vermelho a partir dos anos 30 . O bloco e o medalhão sumiram por ocasião do alargamento da rua da Paciência com a derrubada das casas que ficavam com os fundos para o mar. Ainda hoje se encontram alguns vestígios de alvenarias... Escusado dizer que, apesar das diligências realizadas pela prefeitura, nunca mais encontraram o medalhão de Euricles de Matos e homenageado desapareceu da paisagem... Que coisa, hein ?
Nós tínhamos as feras , que se debatiam no ar, e o objetivo era cortar, as arraias dos outros. Havia verdadeiros campeões. Cortar, como ? Ah, sim...O outro segredo, além da habilidade , estratégia de empinador, era , pelo menos nós pensávamos assim, o tempero , que algumas pessoas chamam de “ cerol”, continua sendo uma mistura de vidro moído e cola passada na linha que, depois de seca, se transformava numa verdadeira navalha ! Podia ser feito com goma de mandioca cozida mas rala , porém o bom mesmo e recomendado era diluir aquela cola de peixe antiga e fedorenta colocando-a na água por uns dias . Podia-se também usar goma arábica , comprada em papelarias... Havia diversas maneiras de temperar o fio ou a linha. A maioria preferia fazer isso na hora de empinar, medida que o vento levava a arraia , e se dava linha... Secava rapidamente e depois começava a disputa no ar . Quando uma arraia era cortada, a meninada corria atrás para recuperá-la , mas ia cair muito longe levada pelo vento , sobre uma árvore mesmo um coqueiro ou fiação elétrica ... Quando recuperavam uma, a briga era tão grande que destruíam a arraia que tanto os fizera correr...Jaime era um rapaz magro e alto, Tinha um irmão de nome Hamilton , um dos campões do pedaço. O vidro tinha que ser moído e depois passado por uma meia feminina para se aproveiitar apenas aquele pozinho para a mistura com a cola. Pois bem. Hoje me lembraram da molqueira do Nadin. O Jaime pediu-lhe para moer um vidro, ele prontamente aceitou e quando o entregou o Jaime achou uma maravilha aquele pozinho muito bem moído parecendo pó de arroz. Preparou tudo, empinou as suas arraias e foi perdendo uma por uma sem cortas as de ninguém. Foi aí que um amigo da onça chegou no ouvido e Jaime e soprou : o Nadin não moeu vidro, e sim mármore...foi uma correria dos diabos , mas depois o Jaime terminou por achar graça na peça que o Nadim que , mais tarde , viria a ser meu compadre, lhe pregou !

Sarnelli, 15.11.2011

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6 comentários:

Cristiano Teixeira disse...

Nunca mais vi ninguém empinando arraia aqui em Salvador, mas recentemente estive em Boipeba e vi uns garotos jogando gude e outros levantando arraias. Minhas sobrinhas pequenas não sabem o que é dana disso, uma pena.
Cristiano

Rosaly disse...

Hoje me deu vontade de ver se alguém lembrava de como se fazia o "tempero da arraia"...Consegui foi receita de arraia de muqueca, arraia disso, arraia, daquilo.. Então resolvi acrescentar vidro e goma arábica. Aí o Google me trouxe seu blog. Já cortei muita arraia no ar. Mas para temperar, estendíamos a linha em várias voltas e saímos passando o "tempero" na linha com a mão em concha. Ah, e nossos botões eram feitos de mica de avião. Isso tudo quando eu era uma menina! Agora, já sou avó.. Rosaly

Rosaly disse...

Hoje me deu vontade de ver se alguém lembrava de como se fazia o "tempero da arraia"...Consegui foi receita de arraia de muqueca, arraia disso, arraia, daquilo.. Então resolvi acrescentar vidro e goma arábica. Aí o Google me trouxe seu blog. Já cortei muita arraia no ar. Mas para temperar, estendíamos a linha em várias voltas e saímos passando o "tempero" na linha com a mão em concha. Ah, e nossos botões eram feitos de mica de avião. Isso tudo quando eu era uma menina! Agora, já sou avó.. Rosaly

Rosaly disse...

Hoje me deu vontade de ver se alguém lembrava de como se fazia o "tempero da arraia"...Consegui foi receita de arraia de muqueca, arraia disso, arraia, daquilo.. Então resolvi acrescentar vidro e goma arábica. Aí o Google me trouxe seu blog. Já cortei muita arraia no ar. Mas para temperar, estendíamos a linha em várias voltas e saímos passando o "tempero" na linha com a mão em concha. Ah, e nossos botões eram feitos de mica de avião. Isso tudo quando eu era uma menina! Agora, já sou avó.. Rosaly

Anônimo disse...

Lembro que tinha as arraias tradicionais com desenhos como "pano da costa" e "caneco" e outros que nao me lembro agora. alguem se lembra quais outros ou se ainda persiste esta tradicao?

Sarnelli disse...

Bem, aos poucos ela vai desaparecendo, porque não é em todos os lugares que se pode empinar arraias como nos velhos tempos. A cidade cresceu, brotaram da terra verdadeiras paredes de espigões, o trânsito é intenso e isso obriga a que o esporte se distancie cada vez mais da cidade e comece a rarear. Além do mais, a moçada de hoje prefere os brinquedos eletrônicos...É verdde, existiam diversos tipos de arraias: pão de leite, xadrez, lisas , espelho, enfim, tudo dependia da criatividade habilidade do empinador... Acho que a mania não volta mais...