Os empinadores de arraias do Rio Vermelho
Foi na manhã de hoje , dia da Proclamação da República e também um dia da já tradicional reunião dos sábados, domingos e feriados , que eu e mais três velhos amigos estávamos conversando abobrinhas, eles degustando uma cervejinha gelada e eu o meu uisque , e algum tira-gosto , quando entrou na conversa o tema arraias...
Foi aí que retrocedemos no tempo e voltamos aos anos de 1940 para relembrar as nossas peripécias de empinadores de arraias.Quando não tínhamos que ir ao colégio, gastávamos a manhã pescando , tomando banhos de mar, jogando bolinhas de gude , peão e outras atividades próprias da idade.
Às tardes , Capim das Freiras , para empinar arraias. Para quem não sabe onde era ou é o capim das freiras, é aquele espaço da Paciência que fica bem em frente à Pedra dos Pássaros , até onde íamos, quando o mar permitia e a coragem deixava...Algumas vezes arrisquei ir até ela com o mar muito calmo, mas era algo fatigante , mesmo para quem tinha a energia daquela idade... Nós gastamos num só dia, toda energia acumulada durante uma noite de bom sono e para isso íamos dormir cedo...
Bem, mas vamos voltar às nossas arraias. Aqui na Bahia as arraias têm um formato retangular e apenas raras vezes, mas raríssimas mesmo, se via ou se vê uma pipa como usam em S.Paulo e outros estados , que chamamos de bacalháu .
As Arraias eram feitas de papel de seda , cruzadas por taliscas de uma vara que nós chamávamos de flexa , usadas também para pescar , muito comum no estado, época mas transformou-se em raridade. As taliscas eram coladas no papel formando um “X” , sendo que uma de cada lado, o que lhe dava solidez. Então era preciso fazer a chave, algo que chamarei de cabresto , para amarrar a linha, algo determinante para ter o seu controle total no ar , normalmente de um carretel ou mesmo dois para que pudesse para ir mais longe, das marcas Coração n. 30 ou mesmo Corrente 20 , um pouco mais grossa ou, ainda, um simples novelo 20, porém com pouca linha... Para manter o equilíbrio no ar, era preciso preparar uma rabada, que alguns meninos faziam com estreitas tiras de tecido leve , no comprimento de cerca de 3 à 3,5 metros. No entanto, quem se esmerava , os campeões, preparavam rabadas de algodão, pequenos flocos ou bolinhas amarrados , um por um , num pedaço de linha com uns 4 ou cinco metros partindo do maior para o menor até terminar apena num simples pedaço de linha. Aí estava o segredo dos empinadores. Fazer a chave e uma bela rabada . Era fácil identificar uma arraia. Claro que todos nós preparávamos as nossas arraias em modelos diversos e misturando cores que combinassem . Claro também que havia os iniciantes e os empinadores de “ periquitos” , meninos pobres que recolhiam pedaços de linha aqui e ali...Os periquitos eram, simplesmente , feitos de papel de jornal ou folhas de caderno , convenientemente dobradas para acolher o vento e tinham uma rabada de cordão de padaria.... Só serviam mesmo para atrapalhar os maiores, mas eles também tinham direito a se divertir e não poucas vezes, um simples periquito cortava uma arraia no ar ! Havia a arraia “ Pão de açúcar” , podia der um “X” que se destacava no ar, um xadrez . Podia ser mesmo apenas vermelha, azul ou verde mas, e até mesmo com papel de jornal montadas com taliscas de palmas de coqueiro...
Quem gostava do esporte , que era emocionantes , se dedicava a fazer coisas mais sofisticadas que eram a sua marca. Um outro local em que empinávamos arraias, era no Farol de Barra, outro pedaço apropriado, com ventos fortes.
Eu e minha turma sempre estivemos nessa . O céu azul de Salvador estava sempre enfeitado de arraias multicoloridas, que se movimentavam graciosamente de um lado para o ouro, algumas mais altas, outras mais baixas. Algumas iam longe, outras nem tanto e algumas quase não saíam do chão por falta de fio... Divertido , emocionante e, por isso mesmo , “ viciante “ ! E, claro, havia também a ansiedade , a bagunça, a torcida e a algazarra ...no momento de uma pegada ;Quem foi empinador de arraia sabe o que estou dizendo “ . Tinha gente que só tinha cabeça para pensar em arraias . E a regra era muito simples , que prevalece até hoje : “ arraia no ar, não tem dono “...
Bem , voltando ao nosso capim das freiras , e se não me falha a Memória , bem ali, existia , de frente para a rua da Paciência, um bloco de granito trabalhado com , encrustado , um medalhão de autoria do escultor italiano , Pasquale De Chirico, morador pioneiro no Rio Vermelho a partir dos anos 30 . O bloco e o medalhão sumiram por ocasião do alargamento da rua da Paciência com a derrubada das casas que ficavam com os fundos para o mar. Ainda hoje se encontram alguns vestígios de alvenarias... Escusado dizer que, apesar das diligências realizadas pela prefeitura, nunca mais encontraram o medalhão de Euricles de Matos e homenageado desapareceu da paisagem... Que coisa, hein ?
Nós tínhamos as feras , que se debatiam no ar, e o objetivo era cortar, as arraias dos outros. Havia verdadeiros campeões. Cortar, como ? Ah, sim...O outro segredo, além da habilidade , estratégia de empinador, era , pelo menos nós pensávamos assim, o tempero , que algumas pessoas chamam de “ cerol”, continua sendo uma mistura de vidro moído e cola passada na linha que, depois de seca, se transformava numa verdadeira navalha ! Podia ser feito com goma de mandioca cozida mas rala , porém o bom mesmo e recomendado era diluir aquela cola de peixe antiga e fedorenta colocando-a na água por uns dias . Podia-se também usar goma arábica , comprada em papelarias... Havia diversas maneiras de temperar o fio ou a linha. A maioria preferia fazer isso na hora de empinar, medida que o vento levava a arraia , e se dava linha... Secava rapidamente e depois começava a disputa no ar . Quando uma arraia era cortada, a meninada corria atrás para recuperá-la , mas ia cair muito longe levada pelo vento , sobre uma árvore mesmo um coqueiro ou fiação elétrica ... Quando recuperavam uma, a briga era tão grande que destruíam a arraia que tanto os fizera correr...Jaime era um rapaz magro e alto, Tinha um irmão de nome Hamilton , um dos campões do pedaço. O vidro tinha que ser moído e depois passado por uma meia feminina para se aproveiitar apenas aquele pozinho para a mistura com a cola. Pois bem. Hoje me lembraram da molqueira do Nadin. O Jaime pediu-lhe para moer um vidro, ele prontamente aceitou e quando o entregou o Jaime achou uma maravilha aquele pozinho muito bem moído parecendo pó de arroz. Preparou tudo, empinou as suas arraias e foi perdendo uma por uma sem cortas as de ninguém. Foi aí que um amigo da onça chegou no ouvido e Jaime e soprou : o Nadin não moeu vidro, e sim mármore...foi uma correria dos diabos , mas depois o Jaime terminou por achar graça na peça que o Nadim que , mais tarde , viria a ser meu compadre, lhe pregou !
Sarnelli, 15.11.2011